Estabelecendo processos próprios num emprego que não os exige

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Recentemente ministrei uma pequena palestra para alguns alunos da Kenzie Academy e achei a experiência de conversar com quem está se preparando para entrar na “indústria de T.I.” bem interessante, inclusive porque me fez pensar em como pode ser complicado começar a trabalhar com um mínimo de ordem em um emprego moderninho que, a princípio, não estabelece nenhum tipo de ordem.

Explico: na minha juventude trabalhei em empresas que tinham os horários e as expectativas claros: tu chega nessa hora, vai almoçar nessa, volta naquela e vai embora em tal horário. E vamos te passando as tarefas e você vai fazendo.

E se por um lado hoje temos processos geralmente muito mais claros (“vamos te passando as tarefas” deu lugar a reuniões de planejamento muitas vezes semanais), por outro vai tornando-se mais difícil encontrar empresas que ainda insistem no modelo de bater-o-ponto. Antes havia a presença clara do chefe, enquanto hoje as decisões mais “granulares” geralmente são tomadas pela própria equipe. O senta-e-obedece deu lugar ao “participe das tomadas de decisões”. Navegar por um mundo assim, já de começo, sem ter tido o costume de seguir regras mais rígidas, pode ser uma aventura confusa e até assustadora.

É fácil simplesmente perder-se. Se ninguém fala sobre horário, será “deselegante” eu me recusar a fazer algum serviço depois que o meu expediente já tiver terminado? Se todos chegam num consenso, será “desagradável” eu dizer que para mim a decisão não faz o menor sentido?

E o grande macete, caro colega, é entender que nada desaparece: as coisas simplesmente mudam de lugar.

Horários

A não ser que seja dito explicitamente o contrário, geralmente é esperado do funcionário uma jornada de oito horas de trabalho. A empresa pode declarar que não contabiliza horário, que cada um faz o seu, mas no fim do dia o que se espera é que 1 dia trabalhado, independente de como você queira organizar seus horários, seja mais ou menos o equivalente a uma jornada de oito horas.

Mas não mais que isso! São oito.

E aqui a dica é: organize-se como achar melhor, mas contabilize suas horas. Como falei antes: nada desaparece! O relógio-ponto sumiu? Não. Ele apenas mudou de lugar: agora é tua responsabilidade controlar seus horários, entende? E é muito importante saber disso, porque agora “o ônus da prova” se inverte: antes a empresa cobrava que você marcasse o ponto corretamente e contabilizava cada hora, para que você não trabalhasse menos do que o previsto em contrato. Mas hoje é você quem tem que controlar suas horas para que não aconteça de você trabalhar mais do que previsto em contrato.

Se antes você precisava de permissão do chefe para sair meia hora mais cedo, agora é o chefe que precisa da tua permissão para pedir mais meia hora de trabalho e não tem nada de errado com isso, mas se você não se aperceber dessa sua responsabilidade consigo mesmo, acabará sempre levando a pior e entregando de graça um tempo precioso que é o tempo que você tem para dedicar às pessoas que você ama e a si mesmo.

Ademais, controlar bem seus horários é parte da sua responsabilidade para com a empresa. É um tanto contraintuitivo, eu sei, mas é verdade: é muito melhor para a empresa que você tenha controle sobre suas horas trabalhadas. Isso porque vai chegar um dia em que você se sentirá exausto e sobrecarregado e vai pedir alguma atitude do seu empregador. Você terá a sensação de ter trabalho demais e, se não tiver controle de suas horas, acabará deixando a empresa na situação ruim de ter que simplesmente acreditar na sua palavra sem nenhuma demonstração concreta de que você de fato tem trabalhado mais do que o combinado.

Veja: a empresa que não controla horário não tem como argumentar contigo! Se você diz que está fazendo muitas horas-extras, como não há um relógio-ponto para ser consultado, acaba que você meio que encosta o empregador contra a parede. E pode parecer algo muito “empoderado”, mas não passa de uma tremenda sacanagem da tua parte, porque talvez nem você mesmo saiba com certeza se tua impressão é baseada em fatos ou é só uma impressão — pode até ser que outros fatores pessoais estejam te deixando cansado e, no fim das contas, você ande fazendo menos horas diariamente!

Ou seja: é melhor para todos que você tenha seu controle próprio de suas horas. E também é absolutamente correto e nada esquisito ouvir de você “ isso é realmente urgente? Porque já deu meu horário. Posso ver isso amanhã cedo pra você “.

“ O combinado não sai caro “. Certo?

Tomadas de decisão

Numa estrutura organizacional rigidamente hierárquica, quando algo vai mal, é muito fácil apontar dedos. E esses dedos geralmente apontam para quem está mais baixo na hierarquia.

Mas hoje é comum estarmos quase todos no fundo da hierarquia e quando a água bate na bunda os mesmos dedos serão apontados porque, repito, nada desaparece, apenas muda de lugar.

No caso dos dedos, espera-se que eles mudem de direção: você deve apontar seu dedo para si mesmo. Porque se antes as responsabilidades eram bem divididas, hoje todos são responsáveis por tudo e isso siginifica que você é responsável por tudo também.

E lembre-se bem disso que vou dizer: se você uma vez fizer a porquice de abrir o microfone para apontar o dedo para outrem, eternamente serás o miserável que abre o microfone para tirar o seu da reta. E não tem nada mais triste do que um adulto infantilóide que não tem auto-consideração o bastante para perceber o papel ridículo que faz quando manifesta-se para tentar deixar claro que a culpa não é dele mas de qualquer outro à sua volta.

Se o seu coleguinha não entendeu direito sua tarefa, então você assume a responsabilidade por não ter incentivado todos a garantirem que estão na mesma página. Se a diretoria tomou uma decisão inadequada por não estar próxima o bastante do cliente a ponto de entender o que realmente gera valor para ele, você assume a responsabilidade por não ter dado um jeito de fazê-los entenderem melhor a situação.

Isso não significa que você precise martirizar-se constantemente como que carregado de culpas, mas que em toda situação você deve ser capaz de perguntar-se (1) o que você poderia ter feito diferente para que a cagada não acontecesse e (2) o que a equipe poderia ter feito diferente para que a cagada não acontecesse. Se você fica contente em simplesmente apontar o dedo para seu semelhante e dar de ombros para a situação, você é limitado demais e não contribui em nada com a melhoria de todos.

E se todos à sua volta são assim: fuja dessa empresa e não olhe para trás.

Mas nem tudo são problemas e espera-se que todos colaborem para que as melhores decisões sejam tomadas. Talvez você não tenha acesso às decisões estratégicas, mas mesmo no operacional nosso de cada dia tem-se sempre uma porção de decisões a serem tomadas e espera-se que você contribua com a equipe e, tudo dando certo, também sinta-se participante da satisfação de ter conseguido bons resultados.

Resumo


Este artigo foi originalmente escrito em 02/02/2021.